Eu cresci ouvindo o meu pai falar com frequência e orgulho, durante os nossos encontros semanais, sobre a primeira e última pega de boi no mato que ele organizou na fazenda Boa Vista, zona rural do município de Betânia, no Sertão do Moxotó, no início da década de 1990.
Segundo ele, foram três dias de festa com apresentações de trios de forró, muita comida, bebida e a participação de mais de 200 vaqueiros e outros muitos espectadores vindos de fazendas, povoados e municípios de quase toda a região. O boi solto no mato era branco e tinha o nome de Camambá. Por ali, era tido como um dos mais valentes e difíceis de pegar no embrenhado da caatinga. Representaria a glória de qualquer vaqueiro cujo laço lhe alcançasse os chifres.
Meu pai fazia parecer que, em todo o sertão, ninguém nunca havia feito uma festa tão grande, bonita e duradoura, e eu, por muito tempo, acreditei nisso. Ele sempre falava a respeito do assunto apoiado numa frágil garantia de que tudo teria sido filmado por alguém cujo nome ele não lembrava e que, na casa de um dos vaqueiros presentes na farra daqueles três dias, localizada no pé de serra mais distante de nós, estaria guardada uma fita VHS com imagens da grande pega de boi de Zé de Santa, na fazenda Boa Vista.
Era verdade, pelo menos, a existência da fita: em 2017, pouco tempo depois de eu ter voltado para Pernambuco, após cinco anos vivendo no Sudeste, meu pai apareceu na casa de minha mãe, em Sítio dos Nunes, distrito de Flores, Sertão do Pajeú, trazendo um pendrive com imagens do que seria um resumo da afamada pega de boi da Fazenda Boa Vista. O vaqueiro guardião da fita a converteu em arquivo digital, copiou os vídeos e presenteou alguns amigos da época com o empréstimo do dispositivo para que também fizessem cópias e guardassem os registros.
Plugando o pendrive à televisão, me impressionei com o que vi, enquanto meu pai, alegre, atestava o que, em muitas versões, há muito tempo, contava e descrevia sem muita sustentação. Para mim, foi um momento de resgate, não só dos arquivos das imagens (que, até aquele momento, ninguém acreditava que pudessem realmente existir), mas do que estive distante durante o tempo que passei fora de casa.
Eu acabava de voltar de um período muito tenso, cinza e de muita saudade no estado de São Paulo. Olhar com mais disposição e atenção para algo tão comum e natural entre os muitos signos que compõem o que há no nosso cotidiano e na realidade plural sertaneja, me conduziu para a reaproximação de algo de que eu precisei me distanciar para enxergar a sua totalidade.
A paisagem, as expressões, os hábitos, as conversas e as toadas registradas no vídeo que meu pai me mostrou são de outra época. As imagens foram feitas em 1992 e muita coisa mudou por aqui e no resto do mundo em 31 anos. No entanto, depois de tanto tempo, tudo isso foi determinante para que eu quisesse buscar e me diluir nesse processo de reconhecimento de território e identidade.
Já se passaram sete anos desde que voltei e comecei a frequentar, observar, fotografar e aproveitar inúmeras festas de pegas de boi no mato pelos sertões do Moxotó e Pajeú. A última em que estive presente ocorreu no dia 7 de outubro, na fazenda São Gonçalo (zona rural de Betânia), organizada pelo vaqueiro Alison Siqueira, conhecido na região como Neném.
O vaqueiro tem 27 anos e organiza pegas de boi no mato desde os 22. Segundo ele, o tempo de preparação para esse tipo de evento, hoje, é de no mínimo um ano. Durante o período, ele precisa juntar dinheiro para arcar com os custos do evento, que vão da alimentação dos vaqueiros e visitantes ao pagamento das premiações dos vencedores, incluindo também as atrações contratadas para animar a festa.
Por Géssica Amorim/Coletivo Acauã