O dicionário ensina os significados da palavra impossível: “o que não pode ser, existir, acontecer” ou “o que é difícil demais de fazer ou conseguir”. Marciano Menezes da Silva derrotou todos. Ele fez, existiu, conseguiu, sobreviveu. Até hoje não há uma explicação única, objetiva. Milagre? Ciência? Fé? A resposta, seja ela qual for, se esconde num sorriso. Tão largo, sincero e raro quanto a força que carrega. O menino virou homem. Tinha 15 anos quando um morcego, no mormaço da madrugada, cravou-lhe o destino. Sertanejo teimoso, nascido resistência antes de tudo, recusou-se a morrer. Desafiando a medicina, Marciano venceu a raiva humana. Ao longo dos últimos 11 anos, desde o ataque naquele domingo quente do dia 7 de setembro de 2008, não precisou superar só a doença. Forjado no meio do mato seco, estrada de barro, quase uma hora distante do Centro da cidade, o menino-coragem teve que lutar para não ser vencido pela pobreza. Virou, ele próprio, uma história cheia de significados. Não foi fácil reencontrar Marciano. Aos 26 anos, o jovem mora no mesmo sítio, onde a família nasceu e se criou, na zona rural de Floresta, a 430 quilômetros do Recife e a sete horas da capital. No Sertão onde Marciano vive, caatinga adentro, quase não há sinal de celular. Internet existe, mas é cara. Então, nem pensar. Desde o retorno para casa, há exatos dez anos, a miséria sempre assombrou a recuperação do garoto. Marciano retornou a Floresta em setembro de 2009, depois de quase um ano internado no Hospital Universitário Oswaldo Cruz (Huoc), no Recife, onde fez o tratamento inédito e vitorioso. De tão precária, a casa de taipa, onde ele foi mordido enquanto dormia, deixou de ser morada. A família teve que se mudar para a casa da avó, de tijolo e cimento. Mas no canto novo não havia sequer banheiro. Na época, o JC acompanhou a viagem de volta. Marciano improvisava o banho na varanda. Para espantar o calor, a cama do menino era colocada de frente para a porta de casa. A pobreza extrema continuava lá, à espreita, turvando a alegria que se instalou na aguardada chegada. O retorno para casa trazia e escancarava a realidade de volta. Ao longo dos anos, a dureza da vida deu umas tréguas, poucas. Devagarzinho, o agricultor João Menezes, 62, pai de Marciano, conseguiu construir um quarto para o filho, com um banheiro adaptado. As sequelas deixadas pela doença são severas: o jovem não anda, tem um desvio na coluna, dificuldade para abrir e fechar as mãos e para movimentar os braços, além de alteração na fala. Há uns três anos, Marciano ganhou, de doação, uma cadeira de rodas motorizada que o permite passear pela casa e lhe confere um tanto de autonomia. Mas as conquistas feitas até aqui podem estar ameaçadas. Há dois anos, o jovem parou de ter acompanhamento especializado nos exercícios para fortalecer os músculos do corpo e melhorar a comunicação. As sessões de fisioterapia e fonoaudiologia eram feitas no Centro de Floresta, com profissionais da prefeitura da cidade. “A médica disse que eu não precisava mais ir, que eu já sabia fazer em casa”, diz Marciano, que fala com dificuldade, mas tem total clareza de raciocínio. Inteligente, o jovem acompanha tudo e, apesar da timidez, não perde a chance de participar das conversas. CONQUISTAS AMEAÇADAS No último domingo, Marciano pegou a estrada. Viajou para reencontrar, no dia seguinte, no Hospital Oswaldo Cruz, o médico intensivista Gustavo Trindade e o infectologista Vicente Vaz. Os dois integraram o batalhão que, em 2008, uniu esforços, preces e conhecimentos científicos para salvar o menino da raiva humana. Na conta da memória e da saudade, fazia uns três anos que o jovem não via pessoalmente seus “anjos”, como Marciano se refere aos profissionais que cuidaram dele no hospital. “Ele representa vitória. Antes dele, no Brasil todos tinham morrido. Só havia dois casos de sobrevivente no mundo. Ele é a força que nos ensinou a jamais desistir. Conseguiu vencer o impossível”, diz Gustavo Trindade. O especialista nutre pelo menino sertanejo um afeto de pai. No Huoc, Marciano fez exames para avaliação do abdome, das pernas e do cérebro, mas a preocupação maior dos médicos é com a interrupção das sessões de fisioterapia e fonoaudiologia. “Do ponto de vista clínico, Marciano está aparentemente bem. Mas é muito importante ele retomar os exercícios para não correr o risco de perder os ganhos que já conquistou com o movimento dos braços e a articulação da fala. É fundamental fortalecer a musculatura para garantir essa autonomia no decorrer de sua vida adulta”, reforça Gustavo Trindade. Quando a reportagem esteve no sítio da família, no inicio deste mês, colheu do secretário de Saúde de Floresta, Aureliano Gonçalves Filho, o compromisso de que o atendimento seria retomado e o jovem teria toda a assistência necessária. “Encontrei um jovem de cadeira de rodas, com um sorriso, um olhar iluminado. É uma pessoa guerreira, que a gente só pode abraçar, fazer a nossa parte, no que diz respeito à gestão pública, e procurar também ajudar de alguma forma”, prometeu. Longe da internet, das redes sociais, dos aplicativos de mensagens, dos memes e de tudo o que domina o atual universo da juventude, Marciano passa os dias vendo televisão. Noveleiro assumido, gosta mesmo é dos folhetins recheados com histórias de amor. A melhor hora do dia é o fim de tarde, quando seu João tange os bodes e as cabras para dentro do sítio. No pé da rampa, construída na entrada de casa, Marciano não tira os olhos verdes da porteira. E lá vêm os animais, em bando, num barulho que é, sobretudo, aconchego. Abre-se, ali, uma janela no tempo. Nela, o adulto Marciano se encontra com o garoto de 15 anos, que adorava montar a cavalo, cuidar dos porcos, tirar leite das vacas e se enfiar pela caatinga, na companhia de Lobinho, o vira-lata com quem o menino vivia grudado e que morreu, tem uns anos, de velhice. Quem perguntar a Marciano por sonhos, vai,