Quando Antônio José Filho Nogueira, hoje com 73 anos de idade, chegou, ainda criança, na década de 1960, a um pequeno povoado, na cidade de Salitre, no Sul do Ceará, próximo à divisa com Pernambuco, ainda eram pouquíssimos os habitantes. Lá, literalmente, ele abriu caminhos. Casou, trabalhou como agricultor e mecânico, constituiu família. Aos poucos, viu chegar a vizinhança. E, diante das mudanças, sempre teve certeza: estava no Ceará.
Mas, essa convicção, nos últimos anos, foi abalada. Um conflito territorial entre as cidades de Salitre (CE) e Ipubi (PE), no qual o Ceará perdeu área para Pernambuco, fez cearenses como seu Antônio “se tornarem” pernambucanos, pois o território habitado por ele e cerca de outras 1.000 pessoas, embora historicamente reconhecido como Ceará, conforme registros formais seguidos, pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), por exemplo, no Censo Demográfico de 2022, pertence ao estado vizinho.
O impasse perdura há anos, mas ganhou ênfase com o Censo, pois, cearenses foram recenseados como pertencentes a Pernambuco. O território em questão em Salitre é conhecido como Serra do Baixio do Moco e lá as comunidades se subdividem em áreas que levam nomes de famílias, como Serra dos Nogueiras, dos Afonsos, dos Carlos, dos Gaudêncios, dos Felisminos, dos Torres, dentre outras.
Antônio junto à esposa, Maria Elizete Pereira, reside na Serra dos Nogueiras (nome referente aos seus ancestrais) e, assim como outros moradores da área entrevistados pelo Diário do Nordeste, conta o drama do conflito: acreditam morar no Ceará, mas formalmente, segundo referências seguidas por órgãos como o IBGE, habitam a cidade de Ipubi, em Pernambuco.
Essa reportagem é a primeira de uma série especial que discutirá ainda, ao longo desta semana, o funcionamento de equipamentos públicos no território em questão; a utilização da área nos processos eleitorais e o que tem sido feito pelas cidades e estados para resolver a questão.
ONDE OCORRE O IMPASSE ENTRE CEARÁ E PERNAMBUCO?
O aglomerado de comunidades rurais nas quais os residentes protagonizam o dilema de estar em uma cidade, mas formalmente constar no território de outra, fica a cerca de 20km da sede de Salitre. Para Ipubi, cidade pernambucana, a distância é maior, cerca de 55 km. A situação é complexa e há anos demanda uma solução.
O Diário do Nordeste esteve na localidade, no mês passado, e relata o problema que afeta cerca de 300 famílias. Fontes afirmam que a questão existe há mais de 15 anos, mas voltou à tona com a execução do Censo Demográfico de 2022, já que famílias salitrenses da área em questão foram recenseadas por profissionais que cobriam Pernambuco, sinalizando que a área não consta oficialmente como sendo Ceará.
O caso não é um litígio, já que as partes envolvidas não disputam ainda o território na Justiça. Mas, a complexidade do problema é evidente e não se descarta que a solução pode passar pela judicialização do caso. A questão não é um impasse territorial somente sobre os limites entre os dois municípios. Vai além. O que está em jogo é também a divisa entre os dois estados. Isso amplifica as dificuldades de resolução e demanda mais esforços.
“Quando chegamos aqui, não tinha nem estrada. A estrada que vinha de Pernambuco era vareda (caminho estreito). No dia que a gente mudou para cá, quase fomos obrigados a fazer uma estrada. Até agora, o que foi aparecendo por aqui foi tudo do Ceará. Antes, só via morador se andasse uma légua. Agora é diferente”, defende Antônio. Na Serra dos Nogueiras, ele criou 10 filhos, que geraram 22 netos e 6 bisnetos que povoam a área.
Para quem está em Salitre, o acesso às comunidades em questão é possível pela CE-187 que se conecta à PE-585. Nesse percurso, para chegar ao local do conflito, saindo da sede do município cearense é preciso dobrar à esquerda e trafegar por uma estrada de terra, que fica bem próxima a linha que divide os 2 estados.
Esse é um ponto central no impasse, pois a Estrada do “Valado” – uma espécie de referência geográfica histórica da área, composta por uma certa elevação e desnível de terra – é reconhecida pelos moradores como a divisa entre Salitre e Ipubi. Mas, a referência cartográfica adotada no Censo, feito pelo IBGE, por exemplo, é outra.
Na Serra dos Nogueiras, além dos dilemas relacionados à identidade e ao pertencimento dos moradores, a área é também o ponto com maior convergência de equipamentos públicos estruturados. Lá são 3 escolas, um posto de saúde e uma praça, erguidos e em funcionamento com dinheiro público de gestões do Ceará. Não há nenhum investimento público contabilizado como advindo de Pernambuco.
QUANDO O CONFLITO ENTRE SALITRE E IPUBI TEVE INÍCIO?
O início do impasse tem versões diferentes. Nas informações coletadas pelo Diário do Nordeste com distintas fontes não há uma precisão sobre o princípio. O presidente da Câmara Municipal de Salitre, vereador Carlos Antônio de Souza, conhecido como Carlinhos da Bulandeira, relata que a “a área sempre foi do Ceará, do município de Salitre”, mas nos 2 últimos censos demográficos, em 2010 e 2022, a população foi confrontada com a informação de que não estaria no Ceará.
“Já constava esse dilema antes e não foi resolvido. Quando é agora, o problema começou a afetar mais. No caso do Censo, o pessoal que recenseou as famílias de Salitre, quando chegou para repensar esse outros moradores de Salitre (da área afetada), o equipamento de registro usado pelos recenseadores não aceitava. E assim perdemos uma área de mais de mil pessoas que são moradores de Salitre, recebem benefícios e são assistidos pelo município em educação, saúde, assistência social e agricultura”.
CARLOS ANTÔNIO DE SOUZA, CONHECIDO COMO CARLINHOS DA BULANDEIRA
Presidente da Câmara Municipal de Salitre
ÚMEROS DO CENSO:
2022
Salitre: 16.633 moradores
Ipubi: 29.009 residentes
2010
Salitre: 15.453 moradores
Ipubi: 28.120 residentes
A Prefeitura de Salitre diz que projetava, a partir dos dados de usuários da rede de saúde, um aumento mais expressivo da população na cidade, mas como há esse impasse, o crescimento foi abaixo do esperado.
Em relação ao conflito, o secretário de Administração e Finanças de Salitre, Heliomar Henis, argumenta que ele ocorre desde 2007 quando, segundo a gestão municipal, “o IBGE fez a medição do estado georreferenciando e naquela época, eu não sei qual o motivo, o IBGE adentrou no Estado do Ceará, mais precisamente no município de Salitre, em 4 quilômetros”.
Conforme o secretário, a divisão entre Salitre e o estado de Pernambuco historicamente foi feita por um valado o qual ainda hoje é possível observar alguns resquícios.
“Entretanto, não sei se por ser mais fácil, o IBGE fez essa medição pela estrada. E aí a gente perde com ela em arrecadação, porque hoje o município com 200 e poucos habitantes a mais a gente passa a 1.2 (índice) do FPM (Fundo de Participação dos Municípios), como também a gente perde em equipamentos nessa área”.
HELIOMAR HENIS
Secretário de Administração e Finanças de Salitre
Heliomar destaca que no Censo de 2000 o mapa de Salitre era um e no de 2010 foi outro.
“Ainda estamos na luta para conseguirmos essa área de pessoas que se identificam como sendo salitrenses. Inclusive, nós tivemos audiência pública onde houve discursos emocionados onde as pessoas disseram que são salitrenses. Porque são pessoas que se identificam com o estado, se identificam com o município. Que desde que nasceram reconhece aquela região como sendo salitrense”.
HELIOMAR HENIS
Secretário de Administração e Finanças de Salitre
DEFINIÇÃO DE LIMITES ENTRE DUAS CIDADES DO NORDESTE
Sobre a questão, o Instituto de Pesquisa e Estratégia Econômica do Ceará (IPECE), instituição ligada ao Governo do Ceará e responsável pela gestão e definição da representação cartográfica dos limites municipais cearenses, diz que, no caso específico, realizou um estudo técnico em parceria com o Comitê de Estudos de Limites e Divisas da Assembleia Legislativa e diagnosticou que esse limite foi ajustado cartograficamente pelo IBGE entre os anos de 2000 e 2007.
A alteração, conforme o levantamento do IPECE e da área técnica da Assembleia Legislativa, afeta mais do que somente as cidades de Salitre e Ipubi. A mudança na divisa, além dos dois municípios, compromete a demarcação de Salitre com Araripina (PE) e Ipubi e do Araripe (CE) com Ipubi e Bodocó (PE). Envolvendo uma área total de 344 km².
O estudo técnico do IPECE mapeou ainda um total de 28 localidades no trecho da divisa, “todas vinculadas até hoje ao estado do Ceará”. E, a mudança cartográfica empreendida na malha de divisas estaduais por parte do IBGE, diz o IPECE, fez com que 21 dessas localidades administradas por Salitre e uma série de equipamentos públicos e privados vinculados ao município constem agora como território de Ipubi.
Já o superintendente do IBGE Ceará, Francisco José Moreira Lopes, diz que o órgão “não muda limites”, mas sim utiliza as leis existentes e a partir daí faz os ajustes necessários. Ele acrescenta que, para entender a questão de Salitre é preciso ponderar que algumas leis no Brasil sobre divisas “são muito antigas e os instrumentos atuais são muito precisos”.
Então, de acordo com Lopes, “anteriormente, o que acontecia é que determinadas áreas que imaginávamos que pertencia a determinado município, com os instrumentos atuais, a gente observa que está em outro”. Nos casos em que há divergência, o IBGE, garante ele, de acordo com os instrumentos legais e os equipamentos novos, faz o ajuste da divisa.
PERCURSOS DOS RECENSEADORES DO IBGE
Lopes ressalta que, no Ceará, a norma mais recente sobre limites é a Lei Estadual 16.821/2019 e o IBGE a utiliza. Ele também enfatiza que no Censo “os recenseadores dos municípios só podem trabalhar rigorosamente dentro dos limites do município. Então, um recenseador de uma cidade não pode coletar dados em outro município, porque o próprio equipamento em que ele registra os dados não permite”.
Em Salitre, acrescenta, os recenseadores “foram até a linha de limite do município”, logo “a área que o que é dita que pertence a Salitre e está dentro de Pernambuco, ela não pode ser coletada pelo Ceará. Essa área, como o limite do momento demonstra, está dentro de Pernambuco e é coletada pelos recenseadores de Pernambuco”, completa ele.
“O IBGE tem usado os equipamentos mais modernos, como é o caso do GPS. O que acontecia anteriormente é que existia uma lei, mas valia o espírito do legislador. Hoje o que acontece, com os novos equipamentos, GPS, a gente tem condição de georreferenciar o pontos de limites, então sabemos com precisão onde começa e termina o município e é evidentemente a partir daí onde o IBGE coleta o dado”.
FRANCISCO JOSÉ MOREIRA LOPES,
Superintendente do IBGE Ceará
Já em Ipubi, procurada pelo Diário do Nordeste, a gestão municipal não demonstrou interesse em assegurar a área como sendo de sua responsabilidade. O secretário de Governo da Prefeitura de Ipubi, José Silvino de Souza, falou da complexidade por se tratar não somente de limites entre cidades, mas da divisa entre estados. O argumento da gestão atribui à Salitre a necessidade de mobilização para reclamar a área perdida.
“QUERO CONTINUAR SENDO CEARENSE”
Nas comunidades, o sentimento é de reafirmação da identidade cearense. “A gente veio saber desse conflito com as autoridades já correndo atrás. Foram feitas audiências públicas. A gente espera que mantenha o que é. Mantenha o Ceará. Eu acredito que se for pra desmembrar essa área, a gente se prejudica. Aqui não tem nada construído e nem começado por Pernambuco”, ressalta o idoso Antônio José Filho Nogueira.
Com toda a família praticamente morando na área afetada, Antônio destaca que apesar de ser uma área remota, “tem tudo perto de casa”. “Temos posto, temos médico, dentista, enfermeira. A comunidade aqui não é só a Nogueira. Tem muitas outras”, completa.
No trabalho técnico feito por representantes do IPECE a da Assembleia Legislativa para tentar buscar soluções para o conflito, seu Antônio foi um dos moradores acionados para indicar os pontos cartográficos tidos como referência de limites entre as cidades: a chamada Estrada do Valado. Ele conduziu técnicos ao local e explicou a divisão reconhecida historicamente pelos moradores.
Legenda: Moradora de Serra dos Nogueiras e merendeira em uma das escolas da localidade, Francisca Marleide Albuquerque, conta os efeitos do impasse no dia a dia/Foto: Ismael Soares
A agricultora, Cassiana Pereira de Aquino, moradora de Serra dos Nogueiras há 24 anos, conta que soube do conflito quando equipes de recenseadoras do IBGE visitaram sua residência.
“Quando passou foi o pessoal de Pernambuco (recenseadoras), aí meu esposo disse: mas somos do Ceará e elas disseram que não. ‘Pelo território, quem tem que fazer somos nós de Pernambuco’. Aí disseram, bem ali já é o Ceará e dali pra cá, é Pernambuco. Eu até brinquei: ei, fí, então vamos fazer a casa mais pra lá”.
CASSIANA PEREIRA DE AQUINO,
Agricultora
Ela afirma que diversas outras casas passaram pelo mesmo procedimento e enfatiza: “Nós queremos pertencer a Salitre. Quero continuar sendo cearense. Até que vive em Serrolândia (distrito de Ipubi) diz que é mais complicado. Eu num sei nem onde fica Ipubi”.
Na localidade, Cassiana trabalha com o cultivo da mandioca, atividade que marca a identidade da população de Salitre, visto que a economia da cidade é movida primordialmente por essa produção. Dos quatro filhos, três ainda são adolescentes e crianças, de 12, 7 e 6 anos de idade, e estudam na Serra dos Nogueiras, usufruindo da escola e da pré-escola mantida pela Prefeitura de Salitre.
A também moradora da comunidade e merendeira em uma das escolas da localidade, Francisca Marleide Albuquerque, relembra que a descoberta sobre o conflito veio antes dos “comunicados oficiais”, pois, segundo ela, há alguns anos, ao observar a medição de temperatura no celular, percebeu que a localização constava como Pernambuco.
“Tudo o que temos foi o Ceará que trouxe. Nasci e me criei aqui. Morei em Pernambuco por um tempo, mas nunca deixei de ser filha de Salitre”, destaca. De acordo com ela, quando era criança, a área era bastante isolada e a localidade começou a prosperar depois que Salitre se emancipou de Campos Sales, em 1988.
Além do comprometimento da própria identidade, Marleide relata que os moradores “não conseguem mais regularizar documentos de terra, de energia” e acrescenta: “inclusive eu uso a energia do vizinho porque na minha casa, como ela só tem 2 anos de construção, eu pedi a energia e só pode colocar quando localizar, se é Pernambuco ou Ceará. A Enel diz que não é mais Ceará, quando a gente vai para Pernambuco, não está registrado. A gente não sabe mais onde está. E quem acaba se prejudicando somos nós mesmos”.
Por Diário do Nordeste